É cada vez mais comum políticos se apoiarem em passagens bíblicas para justificar discursos ideológicos. Antes de mais nada quero deixar bem claro que não há problema algum em professar fé. O problema começa quando a Palavra de Deus vira muleta para ideias políticas, ferramenta de persuasão ou escudo contra críticas.

Nesta semana, ouvi um discurso parlamentar que recorreu a três versículos bíblicos distintos com esse claro propósito. Optei por não citar quem os proferiu. Não por receio, mas porque minha crítica não é à pessoa — é à prática. O foco aqui não é personalizar, mas questionar o uso sistemático e distorcido das Escrituras como instrumento de retórica política. E isso está virando prática comum.

Poderia ter escolhido outras falas e outros versículos, igualmente comuns nos microfones de plenários e palanques. Mas esses três, repetidos com frequência, são suficientes para mostrar como a fé, quando descontextualizada e instrumentalizada, pode ser usada não como luz, mas como sombra.

Não sou teólogo e nem especialista em Bíblia. Mas, diante do uso das três passagens citadas, fui pesquisar sobre o contexto de cada uma. O que encontrei foi um contraste gritante entre o que os textos dizem e o modo como foram utilizados. E é sobre isso que este artigo trata. Porque o problema não está na Palavra, mas em quem a distorce para servir a si mesmo.

“Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lucas 23:34)

Esse versículo é um dos mais impactantes do Evangelho. Jesus, crucificado injustamente, ora pelos seus algozes. Não pede justiça imediata, nem castigo. Pede perdão. Está no auge da dor física e da humilhação pública, mas ainda assim expressa compaixão.

Usar essa passagem para se colocar como alguém injustiçado, perseguido ou como “vítima da ignorância dos outros” é distorcer completamente o espírito do texto. Jesus não está falando de si para se defender. Ele está intercedendo pelos outros — inclusive por aqueles que o condenaram.

É perigoso quando essa frase vira um recurso retórico para justificar ataques, discursos de superioridade moral ou para insinuar que todos que discordam são ignorantes. Ao contrário: Jesus aqui demonstra humildade, e não autodefesa.

E mais: não há sinal algum, nesse versículo, de que ele estivesse usando sua autoridade divina para manipular ou intimidar. O que vemos é vulnerabilidade e entrega — algo bem distante da lógica política de confronto, palanque e autojustificação.

“Por falta de conhecimento, meu povo perece” (Oséias 4:6)

Esse versículo do Antigo Testamento costuma ser citado como um apelo à “verdade” ou à “informação correta” — quase sempre atrelado ao que a pessoa quer impor como certo. Mas o contexto original é muito mais direto e incômodo: é uma denúncia aos sacerdotes e líderes religiosos da época, que haviam corrompido o culto, abandonado a aliança com Deus e conduzido o povo à ruína.

A continuação do versículo raramente é mencionada:

“Porque tu rejeitaste o conhecimento, também eu te rejeitarei, para que não sejas sacerdote diante de mim; e, visto que te esqueceste da lei do teu Deus, também eu me esquecerei de teus filhos.”

Ou seja, o “conhecimento” que falta não é o das opiniões ou narrativas humanas, mas o conhecimento de Deus, rejeitado por líderes que deveriam ser exemplo. Usar esse versículo como forma de se colocar como portador da verdade ou para insinuar ignorância nos outros é cometer exatamente o erro que o texto denuncia.

O livro de Oséias é um grito contra a hipocrisia. É a voz de Deus alertando contra a fé instrumentalizada. Portanto, transformá-lo em ferramenta política é repetir o papel dos próprios líderes religiosos repreendidos no texto.

“Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8:32)

Esse talvez seja o versículo mais usado — e também mais distorcido — em discursos políticos. É comum vê-lo como uma espécie de selo de “autoridade moral”, como se dissesse: “eu estou com a verdade, os outros estão com a mentira”.

Mas o que Jesus realmente diz, no contexto, é:

“Se vocês permanecerem na minha palavra, verdadeiramente serão meus discípulos. E conhecerão a verdade, e a verdade os libertará.” (João 8:31-32)

A verdade que liberta não é uma opinião. Nem uma ideologia. É o próprio Cristo. E o conhecimento dessa verdade só vem com permanência em sua palavra — o que inclui amor ao próximo, misericórdia, humildade e justiça. Tudo o que o discurso político polarizado costuma ignorar.

Transformar esse versículo em uma bandeira de combate é um uso distorcido do texto. Jesus não chama ninguém para a guerra de narrativas. Chama para o discipulado. E a verdade que ele oferece liberta do ego, não o fortalece.

O mesmo erro dos fariseus

Como vimos, esses trechos bíblicos são fortes. Carregam contextos profundos. Mas arrancados de seu sentido original, são distorcidos para servir a uma lógica de combate, condenação e autojustificação política. Não é raro que essas citações sirvam como tentativa de superioridade moral — o “eu estou com Deus, você está contra” — essa ideia de que está tudo dividido entre o bem e o mal, como se Deus tivesse lado político.

A Bíblia não é um panfleto. Nem um script de campanha. Muito menos um repositório de frases de efeito. Quem a usa dessa forma, além de esvaziar sua mensagem, se coloca no lugar de quem Jesus mais confrontava: os fariseus — religiosos que diziam defender a Lei, mas agiam em nome do próprio poder.

Aliás, o próprio texto sagrado faz esse alerta. Em Êxodo 20:7:

“Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão.”

Tomar o nome de Deus em vão é justamente isso que estes políticos fazem: usá-lo para justificar o injustificável. É vestir a fé como fantasia para esconder intenções. É invocar versículos como argumento de autoridade, sem compromisso com o contexto, com a história ou com o Cristo que se diz seguir.

Política se faz com ideias, argumentos, propostas e respeito à diversidade. Misturar religião com conveniência ideológica não é fé. É oportunismo.

E disso, a Bíblia também nos adverte.

2 Replies to “A Palavra usada em vão

  1. Não concordo com tudo, q foi citado neste texto. Pq não mostra o lado daqueles Políticos q estão lutando contra o lado da Política q estão no lado do mal. Esse texto está generalizando a Política . Isso só serve para confundir ainda mais os Cristãos q ainda estão defendendo Políticos q estão no lado do bem.

    1. esse comentário é um exemplo claro do que foi advertido no texto, em especial sobre a hipocrisia e oportunismo de misturar religião com conveniência ideológica. Muito bom o texto. Parabéns pela lucidez das palavras Jadir.

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